Quando pesquisadores da Universidade de Otago (Nova Zelândia) e de Leeds (Reino Unido) anunciaram o desenvolvimento de um dispositivo de perda de peso pioneiro no mundo para ajudar a combater a obesidade, as atenções se voltaram para a novidade. Mas limitar a abertura da boca não é um caminho seguro
Por: Dra. Marcella Garcez, médica nutróloga*
No final de junho, pesquisadores de universidades de diferentes países (Otago, Nova Zelândia e Reino Unido) anunciaram um novo dispositivo de perda de peso que seria pioneiro e “eficaz” para ajudar a combater a epidemia global de obesidade. Trata-se de um dispositivo intraoral adaptado por um dentista aos dentes superiores e inferiores de trás, fabricados sob medida, e que permite a abertura da boca apenas por cerca de 2 mm, restringindo o paciente a uma dieta líquida, mas permitindo a liberdade de ‘expressão’ e a respiração. Esse dispositivo reduz o tratamento da obesidade ao famoso ‘fechar a boca’. A obesidade é uma doença crônica, caracterizada pelo acúmulo excessivo de gordura corporal. Define-se um indivíduo como obeso quando este apresenta índice de massa corporal (IMC) maior que 30, sendo que as principais causas para esse problema incluem uma alimentação desbalanceada, principalmente rica em açúcar e gorduras, e o sedentarismo, ou seja, a falta de prática regular de atividades físicas. Mas não é incomum que esses pacientes sofram de transtornos alimentares, como compulsão. E sabemos que transtornos alimentares são patologias que precisam invariavelmente de tratamento psicoterápico e frequentemente medicamentoso. Não é correto reduzir e simplificar o tratamento da obesidade a um dispositivo que limita a abertura da boca.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do final do ano passado, 26,8% da população brasileira com mais de 20 anos sofre com o problema da obesidade. O anúncio do novo dispositivo, desenvolvido por dentistas, veio juntamente com a publicação no British Dental Journal.
A obesidade também tem causas multifatoriais e a restrição alimentar severa, com dietas líquidas, pode produzir episódios de compulsão alimentar e um risco maior de efeito sanfona após o uso do dispositivo. Não se pode tratar a obesidade oferecendo mecanismos de sofrimento e tortura. Temos que trabalhar a relação do paciente com a comida.
A prática de fechar cirurgicamente as mandíbulas das pessoas não é nova. Ela tornou-se popular na década de 1980, mas trazia riscos, como episódios em que náuseas e vômitos traziam o risco de engasgo. Além disso, após 9 a 12 meses, os pacientes desenvolveram doença gengival. Em alguns casos, houve problemas contínuos com a restrição do movimento da mandíbula e alguns desenvolveram condições psiquiátricas agudas. No novo dispositivo, segundo os pesquisadores, não há consequências adversas. Mas o próprio estudo publicado na Nature relata episódios no mínimo desumanos: os participantes tiveram dificuldade em pronunciar algumas palavras e sentiram-se tensos e envergonhados ‘apenas ocasionalmente’; eles indicaram que ocasionalmente sentiam desconforto e sentiam que a vida em geral era menos satisfatória. O período de uso foi de apenas duas semanas e não há relato de que eles foram acompanhados posteriormente.
O estudo, apesar de citar que a obesidade pode ser considerada um problema de saúde pública, visto que oferece uma série de riscos à saúde, simplifica e desumaniza o tratamento. Na verdade, por ser um problema de saúde pública, cabe aos governos investirem em campanhas de conscientização sobre os perigos que o acúmulo excessivo de gordura corporal pode causar, principalmente estimulando atividades físicas e uma alimentação saudável. A obesidade é um fator de risco para o aumento do colesterol e doenças cardiovasculares, pois o excesso de gordura favorece o acúmulo de placas de colesterol nas artérias coronárias responsáveis por irrigarem o coração, aumentando a predisposição para condições como hipertensão, infarto, insuficiência cardíaca e tromboembolismo. Estar acima do peso também pode sobrecarregar os rins, o que, somado ao aumento da pressão arterial, faz com que o órgão perca progressivamente suas funções, deixando de filtrar o sangue e produzir hormônios, o que causa, consequentemente, a doença renal crônica.
A nossa relação com a comida deve estar em pauta. Uma pessoa come para obter nutrientes e energia para o organismo e sua falta pode levá-la a procurar o que comer. Porém não é preciso diminuir totalmente o estoque de nutrientes do organismo para que um indivíduo sinta fome, pois o organismo é capaz de detectar variações mínimas na concentração de nutrientes e gerar sinais e estímulos que vão desencadear a ingestão de alimentos. A comida pode fornecer prazer imediato e o principal elemento envolvido nessa sensação é um neurotransmissor chamado serotonina. Alimentos mais calóricos, que produzem rápido aumento de energia, podem liberar mais rapidamente esse neurotransmissor, que estimula as mesmas áreas do cérebro que se ativam com o vício em drogas. O chamado apetite emocional pode ser uma resposta ao estresse. O hormônio cortisol causa desejo por comida altamente energética. Os hormônios do estresse fomentam também a formação de células adiposas, que dão mais espaço ao corpo para armazenar energia. Tudo isso deve ser levado em consideração. Há pessoas que comem demais quando estão estressadas ou deprimidas, mas há grandes diferenças individuais, e até as estações do ano influenciam: a maior parte das pessoas come mais no inverno, para manter a temperatura e conforto corporal. A vontade de comer depende de outros fatores, como hábitos sociais, sentimento de vazio, ansiedade, depressão, higidez ou doença física. Tudo isso deve ser levado em consideração quando analisamos um paciente.
É possível investir em cuidados que ajudem a prevenir e combater o problema para a manutenção de uma boa saúde, sendo a adoção de uma alimentação saudável e balanceada o melhor método para evitar o ganho de peso excessivo.
Evite consumir ‘junk foods’ e alimentos industrializados e ricos em sal, açúcar e gordura. No lugar, aposte na ingestão de frutas, verduras, legumes, grãos, alimentos integrais e carnes magras. Incluir atividades físicas na rotina é outra boa maneira de afastar os diversos problemas de saúde relacionados ao sobrepeso. O ideal é que você pratique exercícios físicos pelo menos três vezes por semana, de preferência caminhadas, corridas, natação e ciclismo, que estão entre as práticas mais simples e eficientes para o controle do peso.
Mas, caso você já sofra com obesidade, o ideal é consultar um médico nutrólogo. Evite a todo custo receitas milagrosas para emagrecer e dietas extremamente restritivas encontradas na internet, já que, além de não serem realmente eficazes no emagrecimento, essas mudanças drásticas nos hábitos alimentares, como restrição de grupos alimentares e diminuição de calorias e refeições, podem oferecer riscos à saúde quando realizadas sem acompanhamento médico. O nutrólogo é capacitado para prescrever um plano de emagrecimento e combate à obesidade realmente eficaz e saudável, levando em conta as necessidades e características de cada indivíduo.
O médico poderá recomendar ainda um tratamento multidisciplinar, incluindo, por exemplo, a realização de um exame genético para potencializar a eficácia do acompanhamento nutrológico. Estima-se que de 40 a 70% da variação na suscetibilidade à obesidade e perda de peso seja determinada pelos genes. O tipo genético de cada organismo ajuda a explicar o motivo de diferentes pessoas ganharem ou perderem peso de forma distinta mesmo seguindo uma dieta igual e praticando a mesma quantidade de exercícios físicos. O laudo do exame de nutrigenética fornece justamente informações detalhadas sobre o seu DNA e genes de cada pessoa, que podem ser interpretadas pelo médico nutrólogo para que as recomendações de dieta, nutrição e prática de atividade física sejam específicas para as necessidades e características de seu organismo, auxiliando assim na otimização do controle do peso e na prevenção de doenças. A partir do momento em que entendemos as alterações genéticas que possuímos, podemos realizar mudanças pontuais em nossos hábitos para balancear a ação dos genes e garantirmos a manutenção de nossa saúde.
Dra. Marcella Garcez: Médica Nutróloga, Mestre em Ciências da Saúde pela Escola de Medicina da PUCPR, Diretora da Associação Brasileira de Nutrologia e Docente do Curso Nacional de Nutrologia da ABRAN.