A cortesia do comércio paulistano fornecer água para seus clientes foi extinta. A Câmara de São Paulo aprovou e o prefeito sancionou uma lei que obriga bares, restaurantes, padarias e similares a servirem água “proveniente de fontes naturais ou artificialmente captadas, que tenha passado por dispositivoágua bares e restaurantes filtrante”, de forma gratuita, para seus clientes. Quem não obedecer será multado, na reincidência, em até R$ 8 mil. Popularmente, é o chamado fazer cortesia com o chapéu alheio.
Em princípio, parece ser razoável que um estabelecimento comercial sirva água filtrada aos clientes que a pedirem e nada simpático não aceitar a imposição. Acontece que vender água engarrafada é parte importante da receita. Por sua vez, água, mesmo a vinda da torneira, tem custo, de aquisição, da infraestrutura e sua manutenção, da filtragem, de prestar o serviço de captá-la, filtrá-la, levá-la até o cliente, da lavagem de copos etc. Por outro lado, como o Poder Público pode cobrar por essa água e exigir de que quem paga por ela que a sirva graciosamente? E filtrada!
Pela lei, o Poder Público estaria cometendo mais uma barbaridade que precisa ser apurada: então a água servida, ou melhor vendida, e que chega nas torneiras da cidade, “serviço público essencial” (art. 22 do Código de Defesa do Consumidor), usada por milhões de pessoas para beber, preparar alimentos, higienização etc., não é potável? A lei que obriga a servir água de qualidade está sendo desrespeitada? As diversas normas que protegem o consumidor contra fornecedores estão sendo descumpridas? Também a Portaria 2014 do Ministério da Saúde, onde consta que : “Art. 3° Toda água destinada ao consumo humano, distribuída coletivamente por meio de sistema ou solução alternativa coletiva de abastecimento de água, deve ser objeto de controle e vigilância da qualidade da água.”? O consumidor que está tomando água fora do restaurante está correndo risco? A imagem da SABESP não estaria sendo atingida, também, injustamente?
É razoável que estabelecimentos comerciais sirvam água de qualidade superior a seus clientes, mas não obrigados por vereadores, o que seria hipocrisia, pois o Poder Público lhes cobra pela água. Tal questão se resolve pelo bom senso, cortesia, relacionamento. Nunca se soube de estabelecimento, eles também consumidores dos serviços essenciais do estado, que negasse um copo de água a cliente.
Em outro artigo, a lei exige que o serviço esteja posto de “forma visível” no cardápio, como se os comerciantes fossem delinquentes, tudo sob ameaça de punições, multas elevadas.
Não precisa ser economista para saber que parte do faturamento do combalido, abaladíssimo, endividado, setor de bares, restaurantes, padarias, vêm da venda de água em garrafas. As pesquisas indicam que 50% ainda são deficitários e quase todos têm imensas dívidas dos dezesseis meses de restrições. A lei retira receita desses estabelecimentos, e os onera, no seu momento mais dramático. É injusta, deveria, no mínimo, pensar em compensações com tributos.
Há limites claros na Constituição sobre a forma como políticos podem intervir em negócios alheios, estabelecidos segundo regras de mercado, com receitas e despesas orçadas que visam equilíbrio financeiro. Os estabelecimentos têm que ter receita maior que as despesas ou não sobrevivem e se lhes tiram uma fonte de renda e os obrigam a ter custos, evidente que esse ônus vai para o preço. Até mesmo uma norma legal, a Lei 9.433/1997, deixa claro que a água é um recurso natural limitado dotado de valor econômico. Ou o negócio consegue transferir o custo, ou irá fechar as portas, ou passa à informalidade e vai fazer concorrência desleal com os demais, simples assim. Aliás, entre seus custos, cobrados até em tempo de Covid, quando ficaram com portas fechadas, os comerciantes tiveram que pagar à Prefeitura o IPTU, e IPTU comercial, o ISS, cerca de meia dúzia de taxas, outros tantos tributos, submeter-se a pelo menos uma dezena de fiscalizações.
Não seria mais importante que a Prefeitura ajudasse os estabelecimentos a pagar a água consumida, especialmente os milhares de botequins que lutam para sobreviver e que servem água gentilmente à população que circula em seu entorno, além de ceder seus WC, tendo sua descarga acionada centenas de vezes por dia? São Paulo, com 12 milhões de habitantes, tem reduzido número de WC municipais públicos, sendo um para cada 513 cidadãos que formam a infeliz população de moradores rua, que também se socorre dos botequins regularmente e que merece mais carinho e atenção.
A lei se soma a dezenas de outras que repassam obrigações do Poder Público para os cidadãos e empresas. Basta lembrar o que cada um tem que fazer nas áreas da segurança, educação, transporte, saúde, e tantas outras.
A ABRASEL, corretamente, ajuizou ação para declarar a lei inconstitucional, intervenção desmedida da prefeitura na iniciativa privada, no cerceamento à liberdade econômica, no princípio da moralidade, na segurança jurídica. Se a Prefeitura não pode tabelar preços, quanto mais obrigar o empreendedor a servir algo como cortesia, a preço zero. A ação também é importante para cortar o mal no nascedouro, para não virar moda por outras cidades ou em São Paulo com outros produtos
A impressão que fica é que vereadores e prefeito sabem que a lei é inconstitucional, e a aprovam para ganhar pontos com eleitores. Um erro de que deveriam se retratar. Não faltam problemas para onde deveriam estar dirigindo suas energias e leis.
Afinal, se vereadores e prefeitos podem obrigar um comerciante a dar água assim ou assado, graciosamente, por que não uma feijoada, ou uma cervejinha?
Percival Maricato é advogado e presidente do conselho da Abrasel SP – Associação Brasileira de Bares e Restaurantes