Comer deixou de ter o foco apenas no sabor para se tornar um hábito que tem impacto no desperdício dos alimentos, na saúde e na sustentabilidade de todo o planeta.

A população mundial alcança atualmente quase 7,6 bilhões e as projeções das Nações Unidas apontam que a população mundial deve chegar a 8,6 bilhões em 2030, 9,8 bilhões em 2050 e que supere os 11,2 bilhões em 2100. O crescimento será maior nos países em desenvolvimento. Várias pesquisas indicam que será possível atender a demanda mundial de comida com a utilização de medidas sustentáveis.

O Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, está desenvolvendo uma nova exposição sobre o futuro da alimentação. A exposição acontecerá no próximo ano e apresentará aos visitantes o dilema de alimentar 10 bilhões de pessoas na década de 2050, com qualidade nutricional, diversidade de produção e sustentabilidade. A jornada narrativa do visitante abordará diferentes temas nas áreas expositivas: cultura do comer, novas fronteiras agrícolas, tecnologias, saúde e sociedade.

Nesta segunda-feira (13/08), a organização da Plataforma 2018: Brasil do Amanhã, iniciativa do Museu do Amanhã, abordou o tema alimentação com alguns especialistas da área. Para debater este tema, estiveram presentes no auditório do Museu do Amanhã: Bela Gil, orientadora alimentar e apresentadora de TV, Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade e Responsabilidade Social do Carrefour, Daniela Leite, idealizadora do Comida Invisível e Eduardo Mansur, diretor de Água e Solos da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) .

Confiram os principais tópicos abordados durante o evento:

Fome e obesidade

José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), gravou um vídeo que foi transmitido durante o evento, onde retratou o desperdício de alimentos no mundo. “O mundo tem alimentos mais do que suficientes para alimentar todos de maneira adequada. Perdemos 1/3 do que produzimos, mas a fome hoje é um problema de acesso aos alimentos, porque eles não estão bem distribuídos geograficamente ou porque as pessoas mais pobres não têm acesso à quantidade e qualidade dos alimentos que são produzidos. Paralelamente à fome temos hoje uma epidemia de obesidade. Incrível o que vemos nos países ricos e pobres e às vezes nas mesmas famílias. Pessoas mal nutridas no sentido que comem menos do que precisavam e outras com sobrepeso ou obesidade, comendo mais do que precisam”.

Graziano comentou que fome e obesidade são dois pontos de uma longa linha do comer mal. E a diferença fundamental é que em relação à obesidade não sabemos bem onde ela se localiza. Não existem evidências suficientes como combater. “Sabemos que a obesidade hoje é basicamente proveniente da quantidade de açúcar, de gorduras excessivas e também de sal adicionada, sobretudo, aos elementos pré-preparados”.

A receita é voltar a uma dieta mais natural, mais saudável, com mais componentes de proteínas, de produtos frescos, como peixes, verduras, legumes e frutas. A obesidade afeta, principalmente, as crianças e as mulheres e estima-se que tenha um custo global de cerca de 1 trilhão de dólares, sobretudo impactando o sistema de saúde, mas também reduzindo a vida útil das pessoas e a capacidade locomotora. “Não podemos acreditar que a alimentação é um problema das famílias e das mães. É uma questão de saúde pública”.

Pesquisa do Ministério da Saúde apontou que a prevalência da obesidade passou de 11,8% em 2006 para 18,9% em 2016, atingindo quase um em cada cinco brasileiros.

 

Direito à alimentação

O direito à alimentação no mundo passou a existir em 1948 com o pacto das Nações Unidas. Foi a primeira vez que se elevou ao patamar de direito a questão da alimentação. No Brasil, ele chegou em 2010 com a emenda constitucional na qual foi incluído o direito à alimentação como um dos direitos e garantias fundamentais do Brasil através da Constituição Federal. Daniela Leite, idealizadora do Comida Invisível, observou os dois principais pontos: legislação social e civil.

Na social, é abordada a lei orgânica da assistência social. No artigo primeiro, ela ressalta que o Estado é responsável, mas também cada indivíduo por garantir à sociedade o mínimo para as pessoas em situação de vulnerabilidade social . “Então, não podemos nos eximir do nosso papel de responsabilidade em relação a isto”.

“Quando vamos para o direito civil, não existe uma lei específica que trate da doação de alimentos. Entraremos no capítulo de responsabilidade civil que é um capítulo genérico”.  Atualmente, existem no Congresso Nacional 30 projetos de lei tramitando para acabar com a punição civil e criminal na doação dos alimentos. A mesma responsabilidade que um supermercado tem quando vende, também tem quando doa. Esta restrição pode ser um entrave na prática da doação de alimentos.

Hoje não é proibido doar. Em São Paulo, por exemplo, a Anvisa tem uma portaria estadual que afirma que é permitido doar alimentos. O único problema é a questão da responsabilidade civil.

Daniela Leite trabalha na conscientização e educação para combater o desperdício de alimentos, através de palestras, eventos e consultorias. O aplicativo Comida Invisível aproxima quem tem comida sobrando com quem precisa dela.

“A partir da conexão com meu descarte posso entender que aquilo que era um hábito, muitas vezes é descartado porque não estou pensando naquilo e, quando começo a me conectar com este lixo, percebo que este desperdício vai muito além da questão do alimento. Começo a ver o desperdício de tempo, espaço e relações”.

 

Comer: mudança de hábitos

Para a apresentadora Bela Gil, o alimento não deve ser visto como lixo, porque é um resíduo orgânico e se não for para a mesa deveria ir para um composto. Uma composteira é um lugar para transformar o resíduo orgânico em adubo, alimentar a terra e voltar a ser um novo alimento. “Existe um projeto no Rio, chamado ciclo orgânico (cicloorganico.com.br),  da qual sou usuária dos serviços deste projeto em que eles recolhem o nosso resíduo orgânico, levam para um lugar no qual tem a composteira coletiva e retorna um saquinho de terra para mim todo final do mês”.

Bela comenta que a relação com o alimento é uma questão de educação e hábito que pode ser mudado. “Meu programa começou com foco na alimentação saudável, mas vai muito além do comer bem, comer uma comida natural. Precisamos pensar além do prato. Saber de onde vem a comida, como é produzida e pensar no desperdício deste alimento. Precisamos não pensar somente no prazer e paladar mas também entender se a escolha que estamos fazendo tem um impacto negativo ou positivo na nossa saúde, no meio ambiente ou nas relações sociais, principalmente no campo. O interesse das pessoas por esta alimentação  foi crescendo bastante e agora cheguei a esta alimentação com menos desperdício e um olhar mais integral do alimento. Por exemplo: 50% do peso do melão vem da casca. Então você vai à feira e paga R$ 5,00 no melão, chega em casa e joga a casca fora, joga R$ 2,50 no lixo. Se você entender que a casca do melão pode virar um refogado básico gostoso ou um gratinado maravilhoso, você está valorizando seu dinheiro. Podemos comer melhor e comer mais gastando menos”.

 

Desafio do desperdício

Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade e Responsabilidade Social do Carrefour, analisou o papel importante do supermercado na questão da educação, principalmente, porque todas as pessoas precisam fazer compras. “O desafio do desperdício é muito grande. 35% do que se produz no mundo é desperdiçado, vira lixo, resíduo que causa um impacto ambiental. As pessoas jogam fora o que ainda tem condições de consumo”.
Paulo avaliou que o desperdício precisa ser medido desde o momento em que o alimento vem do produtor, na logística, que talvez seja onde se tem o maior índice de desperdício, até quando ele chega para a distribuição, no supermercado, que também tem um índice bastante grande, e no desperdício pós-consumo. “Existem hábitos que precisam ser avaliados e que impactam neste desperdício, como por exemplo: comprar mais do que precisa, dificuldade na forma como manipula e armazena os alimentos e não aproveitar o alimento em todo seu potencial. Você compra uma beterraba com rama, por exemplo, e a rama normalmente vai para o lixo. Toda uma cultura que foi construída com base para que haja o desperdício”.

Culturalmente, os supermercados também acabaram introduzindo um padrão em que há uma recusa muito grande do que está na gôndola para o consumidor. Isto faz com que muitos destes produtos que poderiam estar à venda, sejam descartados na produção. Ou eles vão para a indústria, que na verdade é um volume menor, ou simplesmente viram resíduos. É mais barato para o produtor descartar a produção do que propriamente enviar ao supermercado, já que ele sabe que será recusado porque não está nos padrões de comercialização.

“Há cinco anos, o Carrefour começou a estruturar uma plataforma anti-desperdício e a idéia é que se consiga ao longo desta cadeia adotar medidas que possam fazer com que o grau de descarte possa ser menor”.

 

Brasil: abundância de recursos naturais

Eduardo Mansur, diretor de Água e Solos da FAO, falou que o Brasil tem abundância de recursos naturais, mas é necessário usar os produtos naturais para produzir alimentos de uma forma sustentável. Isso significa ser econômico, socialmente e ambientalmente aceitável.

A utilização de agroquímicos é uma realidade na produção alimentar, mas é necessário entender o nível que pode ser utilizado. Existem estudos que mostram que a alimentação orgânica é mais saudável, mas hoje não existe uma escala que possa atender toda a demanda. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio.

“Se produzirmos com mais respeito aos recursos naturais, utilizando melhor o nosso solo, a água e a biodiversidade, o Brasil terá um potencial enorme de produzir mais e melhor, sem necessidade de cortar mais florestas”.